Ao longo de seus dois milênios de existência (ou mais alguns, se contarmos, em linhas gerais, o povo de Israel), a Igreja conheceu todos os tipos de perseguições. Lembro-me da impressão que me causou a Basílica de Santo Stefano Rotondo, em Roma, que mostra em suas paredes circulares afresco após afresco cenas dos terríveis martírios sofridos pelos cristãos na Roma antiga, com grande realismo e abundância de sangue. A basílica é linda, mas os murais renascentistas são apenas para espíritos fortes e Dickens, que visitou a igreja, comparou-os a um terrível pesadelo. Depois dos romanos, muitos outros povos, dos japoneses às tribos de Uganda e aos próprios espanhóis no século 20, competiram para ver quem poderia inventar as torturas e martírios mais cruéis para os cristãos.
Por Bruno M
Dito isso, sempre achei a perseguição interna ser, de certa forma, mais cruel, mesmo que seja menos espetacular e sangrenta. Basta ler a vida dos santos para ver que, em inúmeras ocasiões, aqueles que impossibilitaram suas vidas foram seus superiores, seus irmãos frades, monges, sacerdotes ou simplesmente pessoas cristãs, mas obtusos e prontos a condenar o que não entenderam.
Digo que é mais cruel (mesmo que raramente atinja o martírio físico), porque o fato de ser uma perseguição supostamente em "nome de Deus" e em abuso da autoridade da Igreja priva os perseguidos de tudo aquilo a que podem humanamente se agarrar. No final das contas, se forem os outros católicos ou mesmo seus superiores que o perseguem, você vai ter que ser muito, muito ruim, certo? Não é por acaso que o Filho de Deus quis submeter-se precisamente a este tipo cruel de perseguição, sendo condenado pelas autoridades do povo santo como um blasfemador. A própria Palavra de Deus, acusado de blasfêmia e executado por se apresentar como o que era, o Filho de Deus e Rei dos Judeus!
Soma-se a isso o fato de que entre os cristãos há uma fraternidade especial, tão forte que se pode dizer, com verdade, que eles têm um só coração e uma só alma. A fé muitas vezes nos separa daqueles que não crêem, ao mesmo tempo em que nos une sobrenaturalmente a outros crentes. O salmista diz que sou um estranho para os filhos de minha mãe, mas também chama meus irmãos e companheiros que dizem 'vamos à casa do Senhor'. Compartilhar a mesma fé católica cria laços que são mais fortes do que carne e sangue e que, se Deus quiser, durarão para sempre.
O mesmo salmista, porém, clama ao céu com dor: meu amigo, em quem confiei, que dividiu meu pão, é o primeiro a me trair. Quando quem nos faz sofrer é alguém que compartilha conosco a intimidade da presença de Deus, é como se estivesse esfregando sal em nossas feridas. Quanto mais nos sentimos de uma pessoa, mais mal ela nos faz se se voltar contra nós. Quando nossos irmãos em Cristo nos perseguem, conscientemente ou não, com boas ou más intenções, quão dura é a perseguição e quão profunda é a escuridão. Sobretudo quando se trata de pessoas consagradas, que não podem sequer refugiar-se numa vida secular a que renunciaram.
Nesses casos, a alma experimenta a maior solidão possível e só pode se voltar para Deus. É por isso que inúmeras lágrimas foram derramadas em mosteiros, conventos e sacristias e foram palco de dramas que nem os maiores dramaturgos da história poderiam sonhar. A vida em comum é a mais alta penitência, disse São João Berchmans. Deus usa o contato com superiores e irmãos na fé, no sacerdócio ou na vida religiosa como lixa para polir tudo o que nos diferencia de seu Filho Jesus Cristo. Pode-se até dizer que, de vez em quando, ele usa os embates com esses mesmos irmãos como martelo para acabar com a arrogância e a vaidade perenes que não respondem a táticas mais brandas. É assim que o Pai nos associa à Paixão de Cristo para salvar o mundo, porque o grão de trigo, se não cair no chão e morrer, não dá fruto e enquanto morremos, o mundo recebe vida. Aí reside a verdadeira fecundidade apostólica, em saber morrer com Cristo.
No final, o Senhor quis também experimentar esta solidão particular para nos salvar, sofrendo a traição de um dos doze que Ele mesmo escolheu, aqueles que viviam com Ele, a quem Ele abriu o Seu coração e aqueles que O seguiram por onde passou. Toda vez que leio a Paixão não posso deixar de pensar que o beijo de Judas ao traí-lo foi mais duro para Nosso Senhor do que todos os golpes e chicotadas dos legionários pagãos. Sente-se a alma derreter quando se ouve a frase Cristo, coalhado de dor, quando seu discípulo chegou com os guardas do Templo no Getsêmani: Judas, com um beijo você trai o Filho do Homem? Como se dissesse: "Tinha que ser com um beijo, para zombar ainda mais do grande amor que tive por você, meu discípulo, meu amigo?" Só esse beijo resume toda a ingratidão humana desde o início dos tempos e todas as traições desde o pecado de Adão, explica o inferno e encarna, como nenhum outro ato humano, o mysterium iniquitatis. Há algum tempo escrevi um livrinho sobre isso:
O Beijo de Judas
O que é um beijo? Só isso,
Um gesto efêmero e terno
Como o fraco sol de inverno
Que esfrega contra a pele,.
Mas esse beijo pesa muito
Isso abre o terreno para o inferno,
para a terra e o céu eternos
Eles não suportam um peso tão grande.
Chicotadas, pregos, lanças,
Vinagre, insultos e fel
Cristo, meu Senhor, sofreu
E eram menos do que nada
Ao lado do beijo traidor
daquele amigo traidor.
Em suma, não é por acaso que na vida dos santos (e na de todo cristão que leva sua fé a sério) é comum encontrar perseguições sofridas dentro da Igreja, pois há momentos em que Deus tem que tirar tudo de nós, menos a bendita Cruz, que é o caminho para o céu. Desta forma, só assim é operado o milagre que verdadeiramente nos assemelhamos a Cristo, o mais belo dos filhos de Adão, abandonado pelos seus apóstolos, condenado pelos seus sumos sacerdotes, vaiado pelo seu povo e traído com um beijo pelo seu amigo. Se permanecermos fiéis, será então que se poderá dizer verdadeiramente de nós: bem-aventurados os que sofrem, pois serão consolados, pois se morrermos com Ele, viveremos com Ele. Assim seja. (Fonte: INFOCATOLICA)